Nossa Iniciativa dá-se num momento em que a desconexão entre direitos humanos e política fiscal é crítica, com múltiplas consequências negativas que podem ser exacerbadas em contextos de instabilidade econômica ou crise, e em face de medidas de austeridade fiscal, como agora. O problema é particularmente agudo na América Latina e no Caribe, a região mais desigual do mundo, marcada por altos índices de pobreza, medidas severas de austeridade, exploração desregulada dos recursos naturais e corrupção.
Em meio deste contexto, 2023 vem com uma série de oportunidades, momentos e debates que permitirão aos governos, academia, organizações da sociedade civil e movimentos sociais da região pensar e criar alternativas a estes problemas estruturais. Falamos, por exemplo, da Cimeira "Repensando a Tributação Global", convocada pela Colômbia, que discutirá uma nova estrutura global para o sistema tributário internacional e que, com valores como a inclusão, a sustentabilidade e a equidade, contribuirá para orientar as decisões de política fiscal e se-adaptar a uma economia que não pode mais ser guiada pelas regras obsoletas e injustas do passado.
Este também pode ser um ano crucial para começar a reverter a curva de desigualdade na América Latina através de uma maior justiça tributária: não apenas por causa das reformas tributárias progressivas na Colômbia, e eventualmente no Chile ou no Brasil, mas também porque no final de 2022 a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou uma resolução apelando aos Estados para que iniciem negociações sobre uma Convenção Tributária sob os auspícios da ONU.
Segundo Vicente Silva, Oficial da Global Initiative for Economic, Social and Cultural Rights (GIESCR) e membro de nosso Grupo Impulsor, 2023 será um ano importante para o chamado a ganhar tração política, o que seria um grande momento para os países do Sul Global, pois permitiria-lhes alcançar uma governança que defendesse seus interesses nas discussões globais.
Do mesmo jeito, momentos eleitorais em países como Argentina, Guatemala e Paraguai —que estão votando para um novo presidente este ano—, bem como um possível novo plebiscito constitucional no Chile, podem oferecer oportunidades para exigir respostas e compromissos dos candidatos e constituintes sobre os principais desafios que enfrentamos em termos de justiça tributária na região.
Os desafios para a América Latina e o Caribe
Embora estas oportunidades sejam promissoras, nossa região também passa por um momento complexo desde o ponto de vista fiscal e monetário. As projeções da CEPAL esperam um crescimento econômico de cerca de 1,3%, uma inflação mais alta e taxas de juros mais altas devido ao contexto internacional desfavorável. A isto se somam as crises associadas à COVID-19, a crise ecológica, o alto custo de vida e o aumento da desigualdade.
Simultaneamente, a enorme regressividade de nossos sistemas tributários persiste. "Os pobres de nossa região pagam proporcionalmente mais impostos do que os ricos, especialmente as mulheres e os afro-descendentes", diz Nathalie Beghin do Inesc Brasil, um dos membros de nossa Iniciativa. Ela acrescenta pelo menos dois outros desafios que a região enfrenta: evasão e sonegação fiscal. Segundo a CEPAL, o não cumprimento fiscal na região é de cerca de US $325 bilhões anuais, enquanto a Rede de Justiça Tributária estima que os países da América Latina e Caribe perdem cerca de US $43 bilhões anuais em impostos devido ao abuso global de impostos transfronteiriços. Somam-se a isto os privilégios fiscais que beneficiam especialmente os mais ricos.
Para Julieta Izcurdia, da área de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ACIJ Argentina, outra das organizações da Iniciativa, em seu país o endividamento continuará a ocupar o debate público, o que para a sociedade civil implica continuar contribuindo com visões heterodoxas e argumentos robustos que mostram que a dívida é uma questão de direitos humanos e não uma questão puramente econômica, mesmo assim o papel equalizador que a política fiscal, os gastos e os impostos devem desempenhar para reverter as desigualdades em um contexto em que a dívida está condicionando a forma como o governo argentino cobra e investe em políticas sociais.
Do México, a Fundar, que também faz parte da Iniciativa, levanta as dificuldades geradas pelo interesse de seu Estado em aderir aos espaços internacionais emergentes, onde serão discutidas as regras tributárias globais. "Em vez de desempenhar um papel de liderança e assegurar um sistema tributário mais justo, o presidente propôs perante a ONU que aqueles que mais têm deveriam fazer uma contribuição voluntária, uma medida que definitivamente não pode ser considerada um imposto", diz Iván Benumea, coordenador do programa de Justiça Tributária da organização, para quem a desigualdade extrema e a crise climática, como problemas globais que podem ser resolvidos através da cooperação e coordenação internacional, exigem que os governos da região promovam conjuntamente uma política fiscal que esteja à altura do reto.
"Se esperarmos enfrentar com sucesso esses desafios, precisamos de novas idéias de governança e novos arranjos institucionais", diz Vicente Silva do GIESCR, destacando que precisamos de uma política fiscal progressiva e maior cooperação entre os países para possuir recursos suficientes e necessários para a recuperação e para financiar bens e serviços públicos universais, que têm o potencial de enfrentar a crise do custo de vida, reduzir a desigualdade e garantir dignidade para todos dentro dos limites do planeta.
Nossos princípios neste contexto
Além de tributar a riqueza dos indivíduos mais ricos, eliminando despesas tributárias ineficientes e combatendo a evasão e fraude fiscal, Nathalie Beghin do INESC tem esperança nas soluções oferecidas por nossos Princípios sobre Direitos Humanos em Política Fiscal para os principais desafios da região. Ela diz que, com base nos mecanismos legais existentes, estas diretrizes mostram que se não forem feitas mudanças profundas na forma como os recursos públicos são coletados, os direitos humanos não poderão ser realizados e, neste sentido, oferecem alternativas para que nossos governos tomem decisões para a justiça tributária.
É aqui que Vicente Silva concorda, para quem a política fiscal não pode mais ser entendida como uma ferramenta que restringe seu exercício, mas como um dispositivo chave para sua realização. Desta forma, pensar em política fiscal a partir de uma abordagem baseada em direitos exige que repensemos nosso sistema social e econômico, passando de um modelo orientado para o PIB a outro centrado nos direitos das pessoas e na sustentabilidade do planeta. "Todas as agendas transformadoras precisam de recursos para serem viáveis, e os princípios e diretrizes fornecem-nos chaves valiosas para abrir essas conversas entre diferentes setores", conclui ele.