Princípios e Diretrizes
de Direitos Humanos
na Política Fiscal


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Introdução

A política fiscal e os direitos humanos –tanto os civis e políticos quanto os econômicos, sociais e culturais– possuem uma estreita relação. Atualmente, existe um reconhecimento cada vez maior de que essa política se encontra sujeita aos compromissos e obrigações assumidos pelos Estados no âmbito internacional e em suas próprias constituições.

Nesse sentido, as normas de direitos humanos são reconhecidas como um quadro jurídico ao qual a política fiscal deve se adequar. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) estabeleceu que os princípios de direitos humanos são “plenamente aplicáveis às políticas fiscais” e que eles devem ser implementados em todo o ciclo das políticas, “desde a elaboração dos orçamentos e dos códigos tributários ou a alocação de gastos até a supervisão e avaliação das consequências”. Adicionalmente, a política fiscal é regida por outras estruturas normativas, como o direito constitucional doméstico, os princípios gerais do direito internacional e os padrões de política pública e boas práticas de organismos internacionais, que devem ser interpretados em harmonia com as normas de direitos humanos.

Com a adoção da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda de Ação de Adis Abeba da Terceira Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento, os Estados se comprometeram a mobilizar recursos e ajustar suas políticas fiscais para cumprir com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. As normas de direitos humanos foram reconhecidas como a pedra angular dessas agendas.

No entanto, apesar de seu enorme potencial transformador para a realização dos direitos humanos, na prática, a política fiscal não está sendo elaborada em conformidade com as obrigações dos Estados nesse campo. Isso foi reconhecido pela própria CIDH, que aponta como a baixa arrecadação de recursos públicos resultante dos elevados níveis de evasão e elisão fiscal, das abundantes deduções de impostos, isenções e outros vácuos legais, e a persistência de estruturas tributárias regressivas –nas quais aqueles que mais têm não pagam necessariamente mais em proporção a sua capacidade contributiva–, privam os Estados de valiosos recursos para a garantia dos direitos. Soma-se a isto um gasto social insuficiente e mal distribuído na região, que é baixo para os padrões internacionais e, em muitos casos, não tem um enfoque de direitos humanos.

Muitas vezes, aliás, os governos da região respondem às crises econômicas sem considerar adequadamente suas obrigações de direitos humanos e com medidas regressivas e pró-cíclicas. Isso é especialmente grave dada a volatilidade macroeconômica e as frequentes crises que caracterizam a América Latina e o Caribe.

Além disso, a falta de transparência, participação e democracia real no campo da política fiscal teve como resultado sua captura por parte das elites e outros grupos de interesse para reforçar seus privilégios. O auge da privatização só fez aprofundar essa tendência. À medida que as empresas vão adquirindo maior poder político, elas exercem uma maior influência indevida para que se reduzam os impostos sobre as empresas, ampliem as exonerações ou isenções fiscais e expandam as lacunas jurídicas que facilitam a elisão de impostos. Essas medidas diminuem a progressividade 2 e a equidade tributárias, prejudicando os grupos mais desfavorecidos e vulneráveis da sociedade, e debilitam o Estado de Direito. Ao mesmo tempo, fazem com que as administrações públicas sofram um grave déficit de financiamento e a capacidade dos Estados para prestar serviços se veja limitada.

Esse panorama impede que os Estados da região afrontem vários de seus principais desafios. Como advertiu a CIDH, a pobreza e a pobreza extrema não podem ser enfrentadas e erradicadas sem uma ampla estrutura de políticas de caráter redistributivo, incluindo a política fiscal, que reduzam os níveis extremos de desigualdade socioeconômica que caracterizam a América Latina. Em alguns países, inclusive, as pessoas em situação de pobreza não são beneficiárias, e sim pagadoras líquidas, do sistema fiscal.

No contexto da globalização, a cooperação internacional em temas tributários transformou-se em um imperativo para que os Estados possam combater a evasão e a elisão fiscais e brecar a concorrência pela redução de impostos corporativos. Isso permitirá que eles contem com os recursos necessários para enfrentar desafios como a desigualdade extrema, a crise climática, a migração forçada, entre outros desafios-chave do nosso tempo que precisam de Estados bem financiados.

Nesse cenário, os direitos humanos podem fazer uma contribuição valiosa para repensar a política fiscal na região. Os presentes Princípios e Diretrizes de Direitos Humanos na Política Fiscal oferecem uma estrutura normativa evidente para a aplicação dos princípios de direitos humanos ao desenho, implementação e monitoramento da política fiscal. Eles são uma referência para que os Estados, as instituições financeiras internacionais, as agências de cooperação internacional e, de modo geral, os atores econômicos, públicos e privados, cumpram com suas obrigações e responsabilidades nesse campo e para que outros atores estatais, bem como a sociedade civil e os movimentos sociais, tenham uma referência explícita para a prestação de contas e a exigibilidade dos direitos através da política fiscal.

Estes Princípios e Diretrizes são resultado de um processo de três anos de construção e validação conjunta de padrões normativos e diretrizes de política para a região da América Latina e Caribe, mas que pode ser escalado em nível global. Tal processo interdisciplinar contou com a participação de representantes dos Estados, organismos especializados, instituições multilaterais, academia, sociedade civil e movimentos sociais da região mediante consultas regionais e nacionais. O processo de redação e validação contou com um Comitê de pessoas especialistas tanto em política fiscal quanto em direitos humanos de reconhecida trajetória na região.

Com este documento espera-se contribuir para:

(1) levar o tema dos recursos fiscais das margens ao centro da agenda do movimento de direitos humanos;

(2) incentivar os organismos de supervisão e monitoramento nacionais e regionais a incorporarem de maneira mais ativa em sua análise o impacto das políticas fiscais no desfrute dos direitos; e

(3) posicionar as normas de direitos como uma estrutura central para a elaboração da política fiscal na região e para que sociedade civil exija mudanças no tocante a tal política.

Os Princípios e Diretrizes estão estruturados da seguinte forma. Os Princípios contêm prescrições que decorrem de fontes legais, em especial do direito internacional (incluindo fontes da chamada 3 “soft law”), e por isso se traduzem em ações que os Estados “devem” levar adiante. São desenvolvidas mais detalhadamente em subprincípios. Por sua vez, associam-se a eles uma série de diretrizes ou pautas de ação para sua implementação prática.

As Diretrizes têm como objetivo esclarecer as obrigações dos Estados e guiar os tomadores de decisões públicas no cumprimento das normas de direitos humanos. Elas derivam de recomendações de órgãos de tratado e procedimentos especiais do sistema de direitos humanos, de organismos especializados em temas fiscais ou de boas práticas de política validadas pela experiência comparada. Dada a necessidade de utilizar diversas fontes do direito internacional e, em alguns casos, recomendações de política de organismos especializados, nem todas as Diretrizes possuem força normativa. É por isso que elas se enunciam como pautas de ação que os Estados “deveriam” implementar. Uma versão comentada, disponível para consulta no site do projeto (https://derechosypoliticafiscal.org), explica em detalhes as fontes normativas e outras fontes auxiliares das quais derivam os Princípios e Diretrizes.

Princípios de Direitos Humanos na Política Fiscal. ©2024