Princípios e Diretrizes
de Direitos Humanos
na Política Fiscal


Versão 0.0.1 (RASCUNHO)

III.  Obrigações específicas aplicáveis à política fiscal (8-12)

 

08

Os Estados devem adotar todas as medidas financeiras e fiscais necessárias para dar efetividade aos direitos humanos, dentro de uma estrutura fiscal sustentável.

Os Estados devem:

8.1. Estabelecer leis e políticas, bem como estruturas fiscais, sistemas tributários, orçamentos e políticas de gestão da dívida adequadas para assegurar a plena realização dos direitos humanos. Embora possam adotar medidas de diversos tipos, os Estados devem ser capazes de justificar por que as medidas de política fiscal adotadas devem ser consideradas como apropriadas à luz da evidência disponível.

8.2. Garantir que a política fiscal seja sustentável com uma perspectiva social e intergeracional, fazendo um uso racional dos recursos naturais existentes de modo a não comprometer os direitos de populações específicas nem de futuras gerações.

8.3. Adotar um enquadramento de planejamento macrofiscal com vistas a fortalecer sua capacidade de cumprir com suas obrigações em direitos humanos da forma mais rápida possível e assegurar seu cumprimento sustentado no tempo.

8.4. As regras fiscais devem estar orientadas à garantia dos direitos e não a formas que possam preteri-los.  

Diretrizes

Em função desse princípio os Estados deveriam:

1. Quadro fiscal. 
Adotar um plano sistemático que contenha a justificação das medidas de caráter fiscal que os Estados assumirão em uma estrutura multianual que inclua, ao menos, o seguinte:

  • um diagnóstico de como as finanças públicas responderão à situação do país em termos de direitos humanos;

  • objetivos, cronogramas e prazos;

  • indicadores para medir o efetivo cumprimento do plano;

  • instituições responsáveis;

  • recursos alocados;

  • mecanismos de prestação de contas.

2. Sustentabilidade.

  • Dar prioridade à tributação como fonte de renda, acima do endividamento, e estabelecer uma estratégia para assegurar o espaço fiscal que permita adotar uma política contracíclica tanto discricionária quanto não discricionária (estabilizadores automáticos de renda como impostos progressivos e de gasto, mediante mecanismos como seguros-desemprego).  

3. Regras fiscais. 

Abster-se de adotar regras fiscais que restrinjam indevidamente a capacidade das instituições públicas de responder a entornos passíveis de mudança, com vistas à realização progressiva dos direitos ou à proteção dos avanços sociais alcançados.

  • Não adotar regras fiscais que impeçam, à margem de qualquer outra consideração, incrementar o orçamento público total ou para setores sociais específicos para além da inflação causada ou esperada, entre outras medidas excessivamente restringidas que não permitam que os Estados cumpram com suas obrigações em direitos humanos.

4. Fundos de estabilização.

  • Assegurar uma boa gestão macroeconômica das receitas provenientes de recursos naturais, mediante fundos de estabilização e outros mecanismos idôneos.
  • Adotar políticas econômicas e industriais que promovam a diversificação produtiva.

5. Dívida pública. 

  • Certificar-se de que nenhuma de suas decisões no que tange à dívida externa contradiga as obrigações de proteger, respeitar e garantir os direitos humanos.

  • Realizar análises independentes da sustentabilidade da dívida, que incorporem avaliações dos efeitos nos direitos humanos.

 


 

09

Os Estados devem garantir de maneira prioritária o conteúdo mínimo dos direitos econômicos, sociais e culturais em sua política fiscal.

Os Estados devem:

9.1. Assegurar de maneira imediata o direito a um nível adequado de vida e os conteúdos mínimos dos direitos econômicos, sociais e culturais, independentemente dos ciclos econômicos, e inclusive em situações de crise, conflito, emergência ou desastre natural.

9.2. Abster-se de adotar regras fiscais que impeçam a garantia do conteúdo mínimo dos direitos econômicos, sociais e culturais.

9.3. Identificar um gasto social protegido necessário para a garantia do conteúdo mínimo dos direitos, que não pode ser afetado pelos ciclos econômicos.

9.4. Dar máxima prioridade à garantia dos direitos das populações em situação de desvantagem e tornar efetivo um piso de proteção social universal como parte do direito à seguridade social.

Diretrizes

Em função desse princípio os Estados deveriam:

1. Proteção social universal. 
Consolidar sistemas de proteção social universal que:

  • protejam a renda das pessoas e seus dependentes em relação a diversos choques e riscos (individuais e coletivos) de tipo social, econômico e climático;

  • fomentem o acesso a serviços públicos e sociais, tais como educação e saúde e atendam às necessidades e vulnerabilidades particulares das pessoas ao longo do ciclo de vida;

  • incluam como parte dos pisos de proteção social o acesso ao menos à atenção médica essencial, incluindo a atenção à maternidade; a segurança básica de renda para as crianças, proporcionando acesso à nutrição, educação, atenção à saúde e quaisquer outros bens e serviços necessários; a segurança básica de renda para pessoas em idade ativa que não possam trabalhar e obter renda suficiente, em particular em casos de doença, desemprego, maternidade e deficiência; e a segurança básica de renda para as pessoas idosas.

2. Gasto social protegido

  • Identificar em seus orçamentos o gasto social mínimo protegido. 

  • Proteger o financiamento do núcleo duro dos direitos econômicos, sociais e culturais.

  • Não incluir recortes de gastos em matéria de saúde e educação na negociação de acordos de condicionalidade.

  • Realizar gastos contracíclicos para a erradicação da pobreza e a proteção do emprego.

  • Aumentar o gasto destinado ao desenvolvimento de sistemas integrais e universais de proteção social em épocas de prosperidade, sem detrimento da possibilidade de estabelecer mecanismos de poupança que assegurem a possibilidade de efetuar um gasto social contracíclico.

3. Cláusulas de escape.

  • Garantir espaço no orçamento para políticas contracíclicas que minimizem os efeitos das crises econômicas nos direitos humanos.

  • Prever cláusulas de escape ou exceção quando existirem regras fiscais restritivas que não permitam um aumento do gasto público, caso esteja sendo descumprida a garantia de mínimos essenciais, ou com o princípio de proporcionalidade.


 

10

Os Estados devem, mediante sua política fiscal, mobilizar o máximo de recursos disponíveis para alcançar progressivamente a plena efetividade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.  

Os Estados devem:

10.1. Adotar medidas de diversos tipos, incluindo as medidas financeiras, até o máximo dos recursos disponíveis para alcançar progressivamente a plena efetividade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.

10.2. Avaliar periodicamente os efeitos das medidas adotadas para verificar se foram utilizados ao máximo os recursos disponíveis para avançar até esse objetivo da maneira mais rápida e eficaz possível.

10.3. Utilizar a política fiscal para maximizar seus recursos. Isso implica não apenas usar eficazmente os recursos existentes, mas também, quando necessário, incrementar sua renda em formas equitativas, sustentáveis e não regressivas. Devem usar o espaço fiscal disponível quando for verificada a existência de recursos que não estão sendo mobilizados, como os que se perdem em função da evasão e a elisão fiscal, a subutilização de impostos diretos progressivos, os gastos tributários mal desenhados e os fluxos financeiros ilícitos, ou solicitando assistência e cooperação internacional.

10.4. Garantir que suas regras fiscais não restrinjam a capacidade dos Estados de avançar da forma mais rápida possível no desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais e culturais.


Diretrizes

Em função desse princípio os Estados deveriam:

1. Administrações tributárias e luta contra a fraude fiscal.

  • Tornar mais efetiva e eficiente a arrecadação de impostos e a luta contra a evasão e a elisão fiscais, entre outras coisas, melhorando a gestão dos processos de arrecadação tributária com a ajuda da tecnologia da informação e das comunicações, da análise de dados e da inteligência artificial. Esses esforços devem buscar prevenir a fraude fiscal em vez de focar no aumento da arrecadação após a fraude, com arcabouços legais que não facilitem a elisão (por exemplo, revisando certos incentivos fiscais ou os critérios para taxar as operações intragrupo a modo de imposto sobre as empresas).

  • Destinar à sua administração tributária recursos financeiros, humanos e técnicos adequados, garantir que sejam independentes, imparciais, transparentes e responsáveis, além de designar funcionários independentes, bem equipados, capacitados e adequadamente remunerados na luta contra a fraude fiscal.

  • Nas administrações tributárias, designar dependências específicas com competências como investigar a fixação de preços de transferência e aperfeiçoar a cobrança de dívidas tributárias.

  • Exigir aos funcionários de aduanas e de órgãos tributários que utilizem as bases de dados disponíveis para a comparação dos preços do comércio mundial de mercadorias para determinar quais transações requerem mais controle.

  • Estabelecer quadros normativos e um guia para facilitar a notificação de delitos por parte das autoridades tributárias aos organismos competentes.

2. Benefícios fiscais.

  • Publicar todos os tratamentos diferenciados estabelecidos por seus sistemas tributários, incluindo isenções, benefícios fiscais, liberações ou perdões.

  • Assegurar a disponibilidade de informação sobre sua data de vigência, avaliações e razoabilidade, assim como sobre as pessoas e empresas às quais beneficiam, incluindo sua desagregação por decil de renda, sexo, etc.

  • Quantificar o seu custo fiscal total, por beneficiário, por setores e por tipo de benefício ou isenção.

  • Justificar os gastos tributários mediante uma descrição evidente dos avanços deliberados, concretos e orientados ao desfrute dos direitos humanos.

  • Supervisioná-los de maneira pública e transparente. Demonstrar periodicamente que a concessão de isenções fiscais para empresas é a opção menos restritiva da ótica dos direitos.

  • Sujeitar a audiências públicas prévias à sua adoção as isenções outorgadas para mitigar os custos de investimento, condicioná-las à consecução de objetivos mensuráveis e limitá-las no tempo mediante cláusulas de caducidade.

  • Não deve haver acordos secretos.

     

3. Luta contra a corrupção. 

  • Destinar recursos à luta contra a corrupção.

  • Elaborar e aplicar normas eficazes para obter e gerir os fluxos de receitas procedentes de todas as fontes e garantir a transparência, a prestação de contas e a equidade.

  • Realizar campanhas de capacitação e conscientização para os funcionários públicos sobre os custos sociais e econômicos da corrupção.

  • Proibir a dedutibilidade tributária dos pagamentos de subornos para funcionários estrangeiros;

     

4. Aumentar a efetividade e a qualidade do gasto público, incorporando resultados das avaliações de políticas


 

11

Os Estados devem garantir que sua política fiscal não gere retrocessos injustificados nos níveis de proteção alcançados com relação aos direitos econômicos, sociais e culturais, nem mesmo em contextos de crise econômica. 

Os Estados devem:

11.1. Abster-se de adotar medidas regressivas no desfrute dos direitos econômicos, sociais e culturais. Excepcionalmente, poderão fazê-lo se elas estiverem plenamente justificadas na proteção integral dos direitos e forem temporárias, necessárias, proporcionais e não discriminatórias, tomadas de maneira participativa, e somente depois de buscar todas as alternativas possíveis. Devem demonstrar suas alegações de limitações de recursos para explicar uma medida regressiva conforme critérios objetivos, tais como seu nível de desenvolvimento e sua situação econômica, ou a existência de outras necessidades importantes.

11.2. Preservar o gasto social e não minar o desfrute dos direitos alcançados mediante seus instrumentos fiscais, entre eles as regras fiscais. Em contextos de crise econômica, a proteção do gasto social e dos direitos das populações mais desfavorecidas requerem máxima prioridade.


Diretrizes

Em função desse princípio os Estados deveriam:

1. Medidas de ajuste fiscal.

  • Garantir que os compromissos de políticas de ajuste não descumpram as obrigações nacionais e internacionais em matéria de direitos humanos;
  • Determinar um piso de proteção social e um conteúdo básico mínimo dos direitos, cuja proteção esteja garantida a todo momento e proteja especialmente as pessoas e os grupos desfavorecidos e marginalizados; para tanto, os Estados devem recopilar informação estatística desagregada e aumentar a eficácia de seus esforços para a proteção de seus direitos econômicos, sociais e culturais.
  • No caso de que um recorte esteja devidamente justificado em conformidade com os padrões de direitos humanos, analisar seu impacto para se certificar de que não afete desproporcionalmente as pessoas e os grupos populacionais mais desfavorecidos e marginalizados.

2. Crises econômicas e medidas de ajuste fiscal em contextos de crise.

Proteger, manter e inclusive aumentar os esforços em políticas sociais e de investimento, em especial os dirigidos aos membros vulneráveis da sociedade mediante a adoção de programas de relativo baixo custo, como tomar medidas para garantir que o direito a uma alimentação adequada para os grupos e pessoas vulneráveis, ou não reduzir a renda das pessoas com deficiência com medidas inconsistentes com os direitos humanos. Quando adotarem medidas de ajuste fiscal no contexto de uma crise deveriam:

  • Suprimir gradualmente as medidas de austeridade conforme a recuperação da economia após uma crise.

  • Revisar seu regime fiscal para incrementar suas receitas para reestabelecer os níveis dos serviços públicos e as prestações sociais anteriores à crise de maneira transparente e participativa.

3. Ampliação do espaço fiscal.

Explorar e esgotar alternativas menos lesivas do que as políticas de ajuste fiscal, tais como o incremento da arrecadação pela via de impostos diretos progressivos, o combate à evasão e à elisão fiscal, a adoção de estruturas macroeconômicas e regras fiscais mais flexíveis, a realocação de gastos, a gestão de recursos de cooperação internacional, ou o uso prudente de reservas internacionais, entre outras possíveis medidas alternativas para ampliar o espaço fiscal.

4. Avaliações de impacto e prestação de contas.

Realizar avaliações completas dos possíveis efeitos das políticas de disciplina fiscal em diferentes contextos nacionais e subnacionais antes de contrair compromissos a esse respeito.

Realizar uma análise mais profunda das causas estruturais e dos abusos de poder que subjazem a qualquer crise de dívida soberana e assegurar a prestação de contas pelas partes públicas e privadas finalmente responsáveis.


 

12

Os Estados estão facultados, e por vezes obrigados, a incentivar ou desencorajar condutas e corrigir externalidades para garantir os direitos humanos mediante instrumentos específicos de política fiscal.

Os Estados:

12.1. Podem –e em alguns casos devem– utilizar ao máximo os impostos, subsídios e outros instrumentos da política fiscal para criar condições que contribuam para a realização dos direitos humanos. Com sua política fiscal, e mais especificamente sua política tributária, os Estados podem perseguir objetivos como pôr freio à especulação imobiliária, proteger o ambiente e transitar em direção a um modelo de desenvolvimento mais sustentável, ou promover a saúde pública, entre outros.

12.2. Devem tomar medidas para dissuadir a produção, comercialização e consumo de tabaco, entorpecentes e outras substâncias nocivas; aplicar aos produtos de tabaco políticas tributárias para reduzir seu consumo; e proibir ou restringir a venda e/ou a importação de produtos de tabaco livres de impostos e livres de direitos de aduana pelos viajantes internacionais.

12.3. Devem adotar mecanismos de proteção ou compensação para prevenir ou mitigar possíveis impactos regressivos de alguns desses instrumentos sobre certos grupos e garantir que sua implementação seja coerente com outros princípios.


Diretrizes

Em função desse princípio os Estados deveriam:

1. Direito à saúde. 

  • Utilizar medidas regulatórias e fiscais para proteger a saúde pública, com incentivos e desincentivos como os impostos sobre as bebidas açucaradas apropriadamente desenhados e os subsídios para alimentos saudáveis.

  • Eliminar benefícios fiscais para atividades e produtos que prejudiquem a saúde.

2. Direito à moradia.

Tomar medidas fiscais para promover um sistema habitacional inclusivo e evitar a especulação e a excessiva acumulação da riqueza, e utilizar todo o potencial arrecadatório e regulatório do imposto à propriedade, a captação de mais-valias e outros instrumentos fiscais de gestão territorial. Tais medidas incluem revisar os tratamentos fiscais preferenciais dos proprietários em comparação com os inquilinos, sujeitar a maiores impostos os especuladores e investidores em propriedades de luxo, e recuperar e dirigir a fins públicos os lucros obtidos por proprietários privados resultantes de investimentos públicos.

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